O Fantástico Sr. Raposo (Fantastic Mr. Fox, 2009) é um longa-metragem de animação stop motion dirigido pelo estadunidense Wes Anderson e baseado no livro infantil de mesmo nome, escrito por Roald Dahl (1916-1990) e publicado pela primeira vez em 1970. A produção talvez tenha surpreendido aqueles que conheciam Anderson pelos seus filmes protagonizados por astros do cinema contemporâneo, como Bill Murray, Owen Wilson ou Adrien Brody, entre os quais vale aqui lembrar Viagem a Darjeeling (The Darjeeling Limited, 2007) e A Vida Marinha com Steve Zissou (The Life Aquatic with Steve Zissou, 2004) - que conta, inclusive, com o 'auxílio luxuoso' do cantor brasileiro Seu Jorge, interpretando versões acústicas e em português de músicas de David Bowie.
O diretor Wes Anderson em frente a um dos cenários d'O Fantástico Sr. Raposo (2009)
T
odavia, consideradas em um contexto mais amplo, as escolhas de tema e de técnica feitas por Anderson passam a ser menos inusitadas. Poder-se-ia suspeitar, por exemplo, que explorar o filão das adaptações de livros infantis é uma tendência entre realizadores contemporâneos com fama de auteurs: é o caso de Tim Burton, na sua refilmagem de A Fantástica Fábrica de Chocolate (Charlie and the Chocolate Factory, 2005) - outro livro do mesmo Roald Dahl -, ou de Spike Jonze, em seu mais recente Onde Vivem os Monstros (Where the Wild Things Are, 2009), baseado no livro infantil homônimo de Maurice Sendak, de 1963. O fato é que a concepção d'O Fantástico Sr. Raposo remonta ao início dos anos 2000.[1] Além disso, n’A Vida Marinha..., Anderson havia incluído algumas sequências animadas em stop motion, na realização da quais esteve envolvido ninguém menos do que Henry Selick, o diretor d’O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas, 1993) e de Coraline e o Mundo Secreto (Coraline, 2009).
Caranguejos animados: espécimes da exótica vida marinha documentada por Steve Zissou
N'O Fantático Sr. Raposo, Anderson simultaneamente consolida o seu estilo de filmar distintivo e acrescenta a esse último traços inéditos. Nesse sentido, é significativo que, por exemplo, este tenha sido o primeiro filme no qual o diretor adaptou material preexistente, ao invés de partir de um roteiro original. E a adaptação manteve-se em limites deliberadamente estreitos, uma vez que a afeição e o respeito por Dahl e pelo seu livro, que Anderson teria lido ainda criança, pautaram toda a produção:
Tudo que eu tentei foi fazê-lo como Dahl faria. Eu continuamente me perguntava, "O que ele poderia ter feito aqui? Do que ele gostaria?" Quando [a co-roteirista Noah Baumbach e eu] estávamos tentando pensar no que fazer em seguida, nos perguntávamos: "O que se encaixaria na imaginação dele?"[2]
O mesmo respeito pelo livro original e por seu autor (inclusive em termos biográficos [3]) teve reflexos em vários aspectos da concepção visual da animação. Por exemplo, como declarou a viúva de Roald Dahl, Felicity: “Ele [Anderson] pediu que o visual do filme fosse como as ilustrações de Donald Chaffin. Donald Chaffin foi o primeiro a ilustrar O Fantástico Sr. Raposo”.[4] A influência de Chaffin sobre o visual da animação foi ainda maior, uma vez que o ilustrador foi convidado a efetivamente tomar parte na produção, executando peças de concept art.
Ilustração original de Donald Chaffin para uma edição impressa d'O Fantástico Sr. Raposo
Dois exemplos de concept art produzidos por Donald Chaffin para a versão animada d'O Fantástico Sr. Raposo
Simultaneamente, porém, o 'fracasso' da tentativa de simular as intenções de Dahl era patente, como o próprio Anderson concluiu:
Penso que, no final, não é possível para mim simular a imaginação de Roald Dahl. Eu só tenho a minha. E assim, na mesma medida em que estou tentando fazê-lo como Dahl - e esse é o meu objetivo a cada passo do caminho -, no final, todo mundo diz: "Isto definitivamente é coisa sua." [5]
Com efeito, como já frisado, o estilo de filmagem metódico e estilizado de Anderson, conhecido a partir de seus filmes live-action, marca toda a animação: uso de travellings longos e lentos; preferência por composições simétricas e pelo posicionamento estritamente frontal ou de perfil dos personagens com relação à câmera; predominância dos planos de conjunto e 'americano', em contraste com o uso comedido de close-ups. Como nas suas outras produções, Anderson exerceu um controle estreito sobre todos os detalhes, começando pelos pequenos esboços das cenas que ele mesmo realizava, até, por exemplo, a deliberada limitação da palheta cromática utilizada, onde predominam os tons terrosos, responsáveis pela atmosfera 'outonal' de toda a animação.
Esboços de Wes Anderson para a sequência do "cerco da cidade"
Bastidores da produção d'O Fantástico Sr. Raposo: espalhadas pelo ambiente, encontram-se amostras da palheta de tons terrosos que conferem unidade visual ao filme
Além disso, a experiência cinematográfica anterior de Anderson parece ter contribuído para o seu approach muito particular de certos aspectos do cinema de animação. Aqui, eu gostaria de destacar duas singularidades do filme. A primeira diz respeito à utilização parcimoniosa dos efeitos de pós-produção: elementos como, por exemplo, fumaça e fogo, não foram produzidos como seria de se esperar com efeitos especiais, mas, antes, foram animados em stop motion, usando materiais como algodão, estopa e plástico. A intenção, segundo o produtor Jeremy Dawson, era conseguir um resultado que, evitando o amadorismo, fosse "bem orgânico".[6]
Acima, animando fumaça e fogo; abaixo, fotograma mostrando o resultado final.
Outro aspecto singular do Sr. Raposo diz respeito à dublagem. Seguindo uma rotina usual nas grandes produções atuais do cinema de animação em todo mundo, foram convidadas estrelas famosas para dublar os personagens, como George Clooney (Sr. Raposo), Meryl Streep (Sra. Raposo) e Bill Murray, colaborador de Anderson desde os tempos de Três é Demais (Rushmore, 1998) , que dublou o texugo Badger. Mas o processo de dublagem propriamente dito não teve nada de tradicional. A esse respeito, Anderson pontuou:
Gravamos as vozes de forma não convencional. Fomos a uma fazenda e reunimos o grupo. E ele [Clooney] aceitou fazer isso, o que eu agradeço, porque pudemos realizar aquilo que eu tinha idealizado para a gravação das atuações.[7]
George Clooney empresta 'realismo' à sua interpretação do Sr. Raposo comendo
O que Anderson idealizara pra o processo de dublagem foi precisado mais detalhadamente pelo ator Jason Schwartzman, outro colaborador usual do diretor, que no filme empresta sua voz a Ash, filho do Sr. Raposo:
O sonho do Wes era manter os atores o mais próximos possível , com um microfone, e interpretando as cenas. Assim, tinha gente sem fôlego, falas sobrepostas, coisas que acontecem em filmes, mas que não costumam acontecer em animações, porque nestas tudo é feito separadamente.
Se a família Raposo estava cavando um buraco, Wes nos punha na terra e efetivamente nos fazia cavar um buraco no chão. E o microfone ia para todo lugar.[8]
Bill Murray e Wes Anderson: como 'dublar' a escavação de um buraco
Arthur Valle
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[4] Extras. The look of Fantastic Mr. Fox. O Fantástico Sr. Raposo. Direção: Wes Anderson. Twentieth Century Fox, 2010, 1 DVD, Cor.
[5] Interview Wes Anderson, op. cit.
[6] Extras. The look of Fantastic Mr. Fox, op. cit.
[7] Extras. The cast. O Fantástico Sr. Raposo. Direção: Wes Anderson. Twentieth Century Fox, 2010, 1 DVD, Cor.