domingo, 27 de junho de 2010

Sobre a estética de Persepolis

O longa-metragem de animação Persepolis (2007) deriva da novela gráfica criada pela artista de origem iraniana Marjane Satrapi, publicada originalmente em francês, a partir de 2000, por L'Association. Os desenhos dessa obra são caracterizados por um primitivismo intencional, pela simplicidade linear e por fortes contrastes de branco e preto, que remetem aos resultados obtidos por técnicas gráficas tradicionais, em especial a xilogravura popular (uma comparação com, por exemplo, as ilustrações da chamada literatura de cordel brasileira não seria aqui descabida). A ausência quase total de nuances e de meias-tintas foi mesmo por vezes interpretada como uma alusão ao suposto maniqueismo da constituição teocrática implantada no Irã em 1979, que elevou o aiatolá Khomeini ao posto de Guia Supremo da república iraniana.
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Capa e uma página da versão em quadrinhos de Persepolis, de Marjane Satrapi.
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Fotograma de Persepolis (2007)
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Todavia, se a estética da animação é bastante calcada na concepção visual criada por Satrapi para os quadrinhos, simultaneamente, ela se revela mais variada e sutil no seu emprego de tons, cores e referências visuais. Por um lado, a simplicidade do desenho e o contraste exclusivo entre áreas chapadas de branco e preto se mantêm, caracterizando especialmente os personagens - fato que, ao menos em parte, parece se relacionar ao desejo de facilitar os trabalhos de animação. Por outro lado, a ambientação e os cenários de fundo são geralmente repletos de refinadas nuances de cinza e as cenas que retratam o dia-a-dia atual da Marjane adulta fogem completamente da estrita monocromia, sendo colorizadas com delicadeza.
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Fotogramas de Persepolis (2007)
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Em boa medida, essas e outras divergências verificáveis entre a estética dos quadrinhos e a da animação parecem derivar das necessidades levantadas pela transposição entre as duas técnicas artísticas diversas. Para solucioná-las, Satrapi e o co-diretor de Persepolis, Vincent Paronnaud, se referendaram, em grande medida, ao visual de certas correntes do cinema live-action, mais do a animações stricto sensu. Como Satrapi exprimiu a esse respeito:
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Penso que [o visual de Persepolis] poderia ser definido como “realismo estilizado”, porque queríamos um desenho completamente verossímil, não um cartoon. Portanto, diferente de um cartoon, não tínhamos muita margem em termos de expressão facial e movimento. […] Sempre fui obcecada pelos filmes pós-guerra do neo-realismo italiano e do expressionismo alemão, e muito cedo entendi o porquê. Na Alemanha pós-Primeira Guerra, a economia estava tão devastada que não era permitido rodar filmes em locações, eles eram rodados em estúdios, usando evocativas e impressionantes formas geométricas. Na Itália pós-Segunda Guerra, a situação era a mesma, mas o resultado foi o avesso - eles rodavam filmes nas ruas, com atores desconhecidos, pois não tinham dinheiro. Em ambas as escolas, você encontra uma espécie de esperança em pessoas que passaram pela guerra e experimentaram grande desespero. Eu mesmo sou uma pessoa pós-guerra, tendo atravessado os 8 anos da guerra Irã-Iraque. O filme é uma combinação de expressionismo alemão e neo-realismo italiano. Ele combina cenas bem prosaicas, bem realistas, e uma abordagem altamente estilizada, com imagens por vezes tocando as raias da abstração.[1]
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Filmes norte-americanos P&B, da década de 1950, reminiscentes do expressionismo alemão, como O Mensageiro do Diabo (The Night Of The Hunter, 1955), de Charles Laughton, e A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), de Orson Welles, foram igualmente citados por Paronnaud como referências para a identidade visual particular da versão animada de Persepolis.[2]
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Robert Mitchum em The Night of the Hunter (1955), dirigido por Charles Laughton.
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Um outro fator que favorece a diversidade estética em Persepolis é maneira como a própria história é narrada: nos dias atuais (em cores), uma Marjane adulta relembra a sua vida em grandes flashbacks (em P&B), que são, por sua vez, intercalados com seus sonhos e visões e com os relatos de vivências de outros personagens. A passagem entre esses diversos níveis de realidade favorece as mudanças nos estilos da animação e, especialmente no caso dos relatos dentro do relato-mor, esses estilos adquirem um forte acento étnico.
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Assim, por exemplo, quando o pai da pequena ‘Marji’ explica como o Xá chegou ao poder no Irã, as figuras mostradas passam, de pronto, a agir como bonecos, confinados à caixa cênica de um teatro de fantoches. A artificialidade da ambientação, em planos sobrepostos, e do movimento dos personagens evoca manifestações culturais bastante difundidas no
Oriente Médio, como o Karagöz, o teatro de sombras turco, que, desde o início da era moderna, influenciou profundamente a arte das marionetes nessa região.
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Fotogramas de Persepolis (2007).
O Karagöz, teatro de sombras turco,visto da platéia e dos bastidores.

Ou, ainda, quando Anouche, tio de Marjane, relata a fracassada independência do Azerbeijão e a sua fuga dificultosa para a antiga União Soviética, toda a sequência, com a sua justaposição de diversos padrões decorativos e com a espacialidade vagamente isométrica de seus cenários, parece pagar tributo à estética estilizada das miniaturas persas..
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Fotogramas de Persepolis (2007)
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O Jardim da Rosa, ilustração do Khamsa de Djami, 1553.
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Arthur Valle

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[1] "I guess it could be defined as "stylized realism," because we wanted the drawing to be completely life-like, not like a cartoon. Therefore, unlike a cartoon, we didn't have that much of a margin in terms of facial expressions and movement. [...] I've always been obsessed with the post-war film schools of Italian neo-realism and German expressionism and soon understood why. In post-WWI Germany, the economy was so devastated that they couldn't afford to shoot films on location, and so they were shot in studios using mood and amazing geometrical shapes. In post-WWII Italy, the same happened, but things turned out the opposite - they shot films in the streets with unknown actors because they had no money. In both schools, you find the kind of hope in people who went through the war and experienced great despair. I am myself a post-war person having lived through the 8 year war between Iraq and Iran. The film is a combination of sorts; of German expressionism and Italian neo-realism. It features very down-to-earth, realistic scenes, and a highly design-oriented approach, with images sometimes bordering on the abstract." Interview with Marjane Satrapi - Director/Author. Disponível em: http://www.hellosanfrancisco.com/shared/movies/Persepolis.cfm , aba Details. Acesso 26 jun. 2010.

[2] "Did you watch films together before starting to work on Persepolis? / I did watch a few films like The Night Of The Hunter and Touch of Evil, and some action films like Duel which taught me a lot about editing." In: Interview with Vincent Paronnaud - Director. Disponível em: http://www.hellosanfrancisco.com/shared/movies/Persepolis.cfm, aba Details. Acesso 26 jun. 2010, e a entrevista com Satrapi e Paronnaud em Drawn to life. Disponível em: http://www.nytimes.com/packages/html/movies/20071225_PERSEPOLIS_FEATURE/index.html Acesso 26 jun. 2010.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Persepolis (França, EUA, 2007)

Direção e Roteiro: Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud.
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http://www.imdb.com/title/tt0808417/
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Sinopse: Marjane é uma jovem iraniana de oito anos, que sonha em ser uma profetisa. Amada pela avó e pelos pais, cultos e esquerdistas, ela acompanha os acontecimentos que, em 1979, conduzem à queda do Xá e à revolução islâmica iraniana. A chegada da nova república islâmica inaugura a era dos “Guardiões da Revolução”, que controlam como as pessoas devem agir e se vestir. Marjane, que agora deve usar véu, deseja se transformar em uma revolucionária. Para tentar protegê-la, seus pais se vêem obrigados a enviá-la para a Europa. Adaptação da história em quadrinhos homônima de Marjane Satrapi.
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Dia 30 de junho, às 15 hs - Auditório Hilton Salles, P1 / UFRRJ - Campus Seropédica

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A realização de Akira

Capa de Young Magazine (ヤングマガジン), onde o mangá Akira foi inicialmente serializado.
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Como todo longa metragem de animação do seu gênero, Akira começou nos storyboards - no caso, muito detallhados e feitos pelo próprio Katsuhiro Ôtomo.
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Grosso modo, Akira foi realizado com técnicas de animação tradicionais: os elementos a serem animados em cada cena (usualmente os personagens) foram desenhados a mão e retraçados em acetato transparente, onde foram coloridos e finalizados.
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Segundo os produtores, Akira empregou 327 cores padronizadas diferentes - um número bem superior ao utilizado em animes contemporâneos. Em grande medida, isso se deveu ao fato da obra ser destinada ao cinema, mas, igualmente, à quantidade de cenas noturnas nela presentes, cujo detalhamento demandou todo um amplo conjunto de matizes escuros.
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Os personagens eram coloridos em um processo que compreendia 5 etapas.
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Também a criação dos cenários envolveu um grande planejamento. As imagens acima são estudos dos diversos aspectos (internos e externos) do bar Haruki-ya, o predileto da gangue de Kaneda.
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Na realização dos detalhados cenários, foram empregadas diversas técnicas, como a pintura a pincel e a aerografia.
.No processo final de fotografia, os acetatos pintados com personagens eram sobrepostos aos cenários.
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A animação de Akira também lançou mão da computação gráfica em algumas cenas. Os recursos utilizados, embora um tanto arcaicos para os padrões atuais, eram sofisticados para a época (1988).
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Akira foi uma das primeiras animações japonesas a utilizar amplamente o método do prescoring, que consiste em gravar as falas antes da realização da animação definitiva. As atuações serviram, portanto, como referência básica para os animadores, que modelaram as bocas dos personagens em função delas e, igualmente, de certos padrões básicos.
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Fonte das Imagens: Extras: Reportagem sobre a produção. Akira. Edição Especial 20 anos. Direção: Katsuhiro Ôtomo. Focus Filmes, 2008, 2 DVD, Cor.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Neo Tokio, ou o passado do futuro

A ideia de Tóquio sempre surgia em minha mente no estágio de planejamento. Eu queria que fosse Tóquio. Minha ideia era fazer uma história de sci fi que se passasse nessa cidade caótica. Tóquio está muito presente na história.
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Katsuhiro Ôtomo, sobre as diretrizes visuais de Akira [1].
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As palavras acima reproduzidas, de Katsuhiro Ôtomo, o criador e diretor da animação Akira (アキラ, 1988), revelam o quanto a imagem da megalópole pairou, desde os primeiros momentos , sobre a concepção do mangá que deu origem ao longa metragem [2]. E, de fato, na impressionante sequência da perseguição de motos do início do filme, ritmada pela música "étnica" do Geinoh Yamashiro Gumi [3], não é Kaneda, nem nenhum de seus amigos ou inimigos, o personagem principal. Este é, antes, a própria Neo Tokio, que se ergue com seus edifícios-monólitos e com sua miríade de luminosos inquietos. Neo Tokio, uma cidade tão grande que engoliu o seu skyline, tão densa que depravou as suas perspectivas.
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Neo Tokio em fotogramas de Akira (1988), dirigido por Katsuhiro Ôtomo
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Um instantâneo estrategicamente tirado de qualquer metrópole contemporânea bastaria para demonstrar que a Neo Tokio de Akira, mais do que um puro dado da imaginação de Ôtomo, é, essencialmente, uma hipérbole do real. Mas, no Ocidente, o sonho - ou, mais frequentemente, o pesadelo - da cidade desmesurada faz parte de uma tradição bem mais antiga.
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Hong Kong (2006), foto de Michael Wolf da série Architecture of Density. Disponível em: http://www.photomichaelwolf.com/hongkongarchitecture/ Acesso 14 jun. 2010.
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Essa tradição já se anuncia, por exemplo, nas torres de San Gimignano ou nas figurações da Torre de Babel, pintadas por Pieter Brueghel, o Velho, nas quais o símbolo bíblico da húbris e da discórdia humanas parece desafiar os céus, como uma gigantesca colméia de arcos sobrepostos, à la Coliseu. O século XIX, com sua industrialização e seu enorme crescimento urbano, inspiraria o surgimento de imagens análogas, em bem maior quantidade. As representações de Londres são, nesse sentido, exemplares: artistas como Paul Gavarni ou Gustave Doré reinventaram a cidade em tons de branco e preto, que espelhavam um contraste maniqueísta entre opulência e miséria extremas. Nas imagens dos bairros pobres de Londres, feitas por Doré, altos muros de tijolos se elevam, esmagando os menos favorecidos, “uma sensação [...] de terror é provocada por edifícios em ruínas, por ruas brumosas, por chaminés vomitando fumaça” [4]. Na Londres de Doré, a opressão dá a tônica.
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PIETER BRUEGEL, O VELHO (c.1525-1569): A Torre de Babel, c. 1563.
Óleo sobre painel, 114 cm x 155 cm.
Viena, Kunsthistorisches Museum.
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Sobre Londres, pela ferrovia e Ludgate Hill, xilogravuras segundo Gustave Doré (1832-1883), para o livro London: A Pilgrimage, publicado em 1872.
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Dos poemas e pinturas dos futuristas italianos às obras dos artistas alemães da Neue Sachlichkeit, das Villes Tentaculaires de Émile Verhaeren às Cités Obscures de François Schuiten, a imagem da megalópole assume os ares de uma obsessão moderna. Em sua obra gráfica, um artista como Andreas Paul Weber [5] captura com frequencia o desconforto gerado pela inumanidade das grandes cidades, como em Lugar morto ou n’O Rumor, cujas janelas padronizadas, multiplicando-se ao infinito, frisam a sensação angustiante de anonimato e a dissolução total das identidades. Poder-se-ia como que reencontrar, nas sequências finais da animação de Ôtomo, o apocalipse urbano e o caráter grotesco da personificação do rumor que se destacam nas imagens de Weber.
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A. PAUL WEBER (1893-1980): Lugar morto (Tote stätte), 1975.
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A. PAUL WEBER (1893-1980): O Rumor (Das Gerücht), 1943-53.
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As aproximações entre Akira e as obras acima referidas são arbitrárias. Todavia, comentários de Ôtomo revelam algumas referências ocidentais que efetivamente contribuíram para a concepção da sua versão futurista de Tokio. É o caso, por exemplo, quando ele reflete sobre a recepção do mangá original e da adaptação animada fora do Japão:
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Fiquei preocupado em saber se gostariam ou não, mas as pessoas viram e acharam interessante. É como 'Blade Runner' e cyberpunk. Acho que tem a mesma visão do mundo que eles. O fato de que o mangá 'Akira' e o filme de animação terem sido aceitos no exterior deve-se ao fato de que compartilham dessas imagens. [6]
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A refrência ao cyberpunk é precisa. Desde pelo menos Neuromancer (1984), o livro inicial da Trilogia Sprawl de William Gibson, o cyberpunk havia se afirmado na cultura popular, transformando a distopia em um clichê recorrente. Boa parte da sua estética, porém, já se encontrava madura em um filme como o de Ridley Scott. A Neo Tokio de Akira e a Los Angeles de Blade Runner guardam, de fato, mais de uma semelhança: dir-se-ia que são cidades irmãs. Assim, a arte do cinema, cujos produtos influenciaram fundamentalmente Ôtomo [7], se insinua como um outro filão no qual a imagem da megalópole deita raízes profundas. Bastaria lembrar de um de seus primeiros exemplos, que assumiu o estatuto de verdadeiro paradigma: a inumana cidade de Metropolis (1927), de Fritz Lang, uma espécie de Babilônia projetada no futuro, com direito aos seus próprios deuses sombrios.



A Los Angeles de Blade Runner (1982), filme dirigido por Ridley Scott
.Fotogramas de Metropolis (1927), dirigido por Fritz Lang
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Arthur Valle
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[1] Extras: Entrevista com o Diretor. Akira. Edição Especial 20 anos. Direção: Katsuhiro Ôtomo. Focus Filmes, 2008, 2 DVD, Cor.
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[2] Akira, originalmente um mangá seriado em preto e branco, foi publicado nas páginas de Young Magazine (ヤングマガジン), de 1982 a 1990 - portanto, a versão animada estreou antes mesmo que a enorme série original, com mais de 2000 páginas, fosse concluída. A obra foi depois reunida em seis volumes pela editora japonesa Kodansha.

[3] O Geinoh Yamashiro Gumi (芸能山城組) é um coletivo musical japonês, fundado em 1974 por Tsutomu Ōhashi, que assinou a trilha de Akira usando um pseudônimo, Shoji Yamashiro.
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[4] HASKELL, Francis. Le Londres de Gustave Doré. In: ____. De l'art et du goût. Jadis et Naguère. Paris: Gallimard, 1989, p. 283.
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[5] Parte da obra de A. P. Weber pode ser conhecida no seguinte site: http://www.weber-museum.de/ Acesso em 14 jun. 2010.
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[6] Extras: Entrevista com o Diretor, op. cit.


[7] Na entrevista acima citada, Ôtomo reconheceu explicitamente a influência de filmes norte-americanos do final dos anos 1960, como Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969), de George Roy Hill, ou Easy Rider (196), de Dennis Hopper, que partilham o mesmo vago ideal libertário.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Akira (アキラ, Japão, 1988)

Direção: Katsuhiro Ôtomo
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Roteiro: Katsuhiro Ôtomo (novela gráfica) e Izô Hashimoto (screenplay)
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Musica Original: Shoji Yamashiro
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http://www.imdb.com/title/tt0094625/
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Dia 16 de junho, às 15 hs - Auditório Hilton Salles, P1 / UFRRJ - Campus Seropédica

domingo, 6 de junho de 2010

Por trás da cena d'O Estranho Mundo de Jack

Personagens da animação, segundo desenhos originais de Tim Burton
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Storyboards
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Maquete preliminar em papel
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Maquete da praça da Cidade do Halloween, em escala 1:4
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Armaduras de metal articuladas estruturam os bonecos
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Uma armadura na forma de moldagem de um boneco
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Retirando um boneco da forma
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Fazendo o acabamento em um boneco
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Animando Jack Skellington, no set de filmagem
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Para cada expressão e para cada tipo de sílaba falada, uma cabeça...
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Integrando técnicas diferentes de animação: a) os presentes, sustentados por fios, são filmados em stop motion; b) em seguida, é feita uma rotoscopia dos presentes, que c) serve de referência para a animação desenhada dos fantasmas; d) montagem final
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Fonte das imagens: Nos Bastidores: Por Trás das Câmeras de 'O Estranho Mundo de Jack'. O Estranho Mundo de Jack. Edição de Colecionador - 2 discos. Direção: Henry Selick. Produção: Tim Burton e Denise Di Novi. Disney, 2008, 2 DVD, Cor.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

O Estranho Mundo de Jack: Algumas referências visuais

O longa-metragem de animação stop-motion O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare before Christimas, 1993) é um ícone da cultura gótica contemporânea. Seus personagens, em especial Jack Skellington - capaz de encarnar com o igual perfeição o cute e o horripilante - estampam broches, bonés, camisetas e a própria pele de incontáveis fãs, mundo afora. Creio que parte dessa persistente repercussão, passados já quase duas décadas de lançamento do filme, se deve ao uso inteligente, muitas vezes irônico, nele feito de um amplo leque de referências, que passeiam entre estratos culturais diversos. Nesse post, mais do que tentar qualquer análise do Nightmare, eu gostaria de apresentar uma listagem - necessariamente parcial - dessas referências.
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Um bom ponto de partida para isso são as próprias declarações dos criadores do filme. Tim Burton, em uma entrevista que faz parte do making of oficial da animação [1], esclareceu a esse respeito:
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Cresci gostando de histórias que todo Natal eram exibidas, como Rudolph, a Rena do Nariz Vermelho [Rudolph, the Red-Nosed Reindeer (1964)] ou O Grinch que Roubou o Natal [How the Grinch Stole Christmas! (1966)]. Esses eram os meus especiais de Natal preferidos, quando eu crescia. Quando trabalhava na Disney, eu desenhei algo que era mais ou menos o inverso disso. É como o Grinch às avessas, por assim dizer, é sobre esse personagem que descobre o Natal e adora isso e decide fazer o Natal por conta própria. [2]
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Merece ser frisada a citação ao Grinch, estrela de um livro do Dr. Seuss editado em 1957, que em 1966 conheceu uma adaptação para TV, co-dirigida por Chuck Jones (animador de, entre outros, personagens conhecidos como Pernalonga e Papa-Léguas): descontadas as diferenças de intenção, são de fato notáveis as proximidades entre Jack e Grinch, que se travestem ambos de Papai Noel, em suas peripécias que tem consequências sinistras para o Natal.


Theodor Seuss Geisel (Dr. Seuss) trabalhando em um desenho do Grinch para How the Grinch Stole Christmas!, em 1957


Fotograma de How the Grinch Stole Christmas! (1966),dirigido por Chuck Jones e Ben Washam
e fotograma de The Nightmare before Christimas (1993) 

Igualmente, é mais do que uma simples coincidência a semelhança entre os focinhos brilhantes de Zero, o cachorro-fantasma de Jack, e de Rudolph - assim como os habitantes da Cidade do Natal, em Nightmare, devem algo do seu aspecto aos personagens da animação protagonizada pela rena de nariz vermelho. Nessa mesma linha, vale a pena lembrar de um outro longa-metragem em stop-motion realizado por Jules Bass, um dos produtores de Rudoph: trata-se d'A Festa do Monstro Maluco (Mad Monster Party?, 1967), uma atração recorrente das antigas “Sessões da Tarde” brasileiras, no qual uma dezena de monstros famosos contracenam, como que prefigurando a medonha população da Cidade do Halloween, em Nightmare.


Rudolph e um companheiro em fotograma de Rudolph, the Red-Nosed Reindeer (1964) 
e Zero, em fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)


Cartaz e fotograma de Mad Monster Party? (1967), dirigido por Jules Bass


No acima citado making of de Nightmare, o diretor Henry Selick fez a seguinte declaração a respeito da concepção visual do filme:
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A direção de arte segue de perto as diretrizes que Tim Burton imprimiu a outros filmes, especialmente ao seu primeiro curta-metragem, Vincent - expressionistas alemães combinados com Dr. Seuss. [2]
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De fato, é mais do que patente o débito de Nightmare para com alguns clássicos do chamado cinema expressionista alemão. Para ficar em dois exemplos somente: a espacialidade que caracteriza a Cidade do Halloween é muito semelhante às perspectivas alucinadas que marcam O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920), filme dirigido por Robert Wiene, e os vampiros de Nightmare pertencem à mesma linhagem assustadora do Nosferatu criado por Friedrich Wilhelm Murnau [cf. link].


 Croqui e fotograma de Das Cabinet des Dr. Caligari (1920), dirigido por Robert Wiene


Cartaz italiano de Nosferatu, eine Symphonie des Grauens (1922), dirigido por F W. Murnau
e os vampiros de The Nightmare Before Christmas (1993)


Na continuidade estética do cinema expressionista alemão, outras referências para a animação protagonizada por Jack Skellington pertencem aquele rico filão de filmes de terror/horror, que floresceu nos países de língua inglesa. Não seria possível esgotar aqui a lista de obras de produtoras como a norte-americana Universal Pictures ou a inglesa Hammer que poderiam ser comparados ao Nightmare. Mesmo o celebrado Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, cuja sombria sequência de abertura ecoa as películas expressionistas, me parece ser citado - em mais de um momento - no filme concebido por Burton: desse modo, por exemplo, o traveling que literalmente introduz o espectador na Cidade do Haloween, no início de Nightmare, guarda algo das tomadas progressivamente mais próximas da mansão de Kane, que abrem o filme de Welles.


Acima, fotogramas da sequência de abertura de Citizen Kane (1941), dirigido por Orson Welles 
e, abaixo, fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)

Fotograma de Citizen Kane (1941), dirigido por Orson Welles 
e fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)


Mas qualquer lista de referências visuais de Nightmare não deve deixar de incluir obras e artistas que figuram nos compêndios da disciplina tradicionalmente mais prestigiada que é a História da Arte. Uma interessante aproximação poderia ser feita, nesse sentido, entre a própria figura de Jack e o personagem de um desenho do artista belga Félicien Rops, intitulado O Vício Supremo (c.1884) [4], produzido como frontispício de um livro do literato decadentista Joséphin Péladan. Não somente a constituição física - esguia e cadavérica - e a indumentária de Jack parecem quase decalcadas da obra de Rops: também a 'habilidade' que Jack tem de remover a sua própria cabeça frisa o seu parentesco com a criatura acéfala do belga.


À esquerda, Le Vice suprême (c.1884) de Félicien Rops [4]
detalhe de fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)


A referência a Rops é apenas a 'ponta do iceberg' da relação de Burton com a cultura figurativa européia de finais do século XIX, onde surgem com destaque as tendências decadentistas e simbolistas. Não é o momento de discutir essa relação, mas alguns poucos exemplos deverão bastar aqui. Já muito se chamou a atenção para a influência que exerceu sobre o imaginário e o tom da obras de Burton um ilustrador como Edward Gorey, com a sua sensibilidade 'vitoriana' - e, de fato, as texturas que aparecem no curta Vincent são muito semelhantes ao uso de hachuras que Gorey faz em suas imagens. Mas, no caso de Nightmare, creio que os precedentes para as texturas torturadas, quase onipresentes nas superfícies da Cidade do Haloween, devem ser buscados na produção gráfica e pinturas de artistas como Edward Munch, Vincent Van Gogh ou James Ensor - não por acaso, sempre citados como 'precursores' dos expressionistas do século XX. As forma e ritmos do autor d'O Grito [5] ou a realidade transfigurada apresentada por Van Gogh e evidente em obras como A Noite Estrelada [6], ecoam, assim, profundamente e de formas múltiplas, na animação criada por Burton.


À esquerda, O grito, (1895), de Edward Munch [5]
e fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)

À esquerda, A Noite Estrelada (1889), de Vincent Van Gogh [6]
e fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)

Arthur Valle
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[1] Nos Bastidores: Por Trás das Câmeras de 'O Estranho Mundo de Jack'. O Estranho Mundo de Jack. Edição de Colecionador - 2 discos. Direção: Henry Selick. Produção: Tim Burton e Denise Di Novi. Disney, 2008, 2 DVD, Cor.
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[2] "I grew up liking those stories like, you know, every Christmas you'd watch things like Rudolph, the Red-Nosed Reindeer, or The Grinch that Stole Christmas. Those were my favorites holiday specials when I was growing up. So, when I was working at Disney, I designed something that's sort of the reverse of that. It's like the Grinch in reverse, so to speak, about this character who finds Christmas and loves it and decides to try to do it himself". Idem.
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[3] "The art direction is very along the lines of what Tim Burton has done in others films, especially in his first short film, Vincent - German expressionists combined with Dr. Seuss". Idem.
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[4] FÉLICIEN ROPS (1833-1889): O Vício Supremo, c. 1884. Técnica mista sobre papel, 23,8 x 16 cm. Bruxelas, Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique. Mais informações sobre o desenho de Rops podem ser encontrados no seguinte link..
[5] Os dados da versão aqui reproduzida são: EDWARD MUNCH (1863-1944): O grito, 1895. Litografia, crayon e tusche, 35,5 x 25,4 cm.
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[6] VINCENT VAN GOGH (1853-1890): A Noite Estrelada, 1889. Óleo em tela, 73,7 × 92,1 cm. Nova York, Museum of Modern Art.