quinta-feira, 3 de junho de 2010

O Estranho Mundo de Jack: Algumas referências visuais

O longa-metragem de animação stop-motion O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare before Christimas, 1993) é um ícone da cultura gótica contemporânea. Seus personagens, em especial Jack Skellington - capaz de encarnar com o igual perfeição o cute e o horripilante - estampam broches, bonés, camisetas e a própria pele de incontáveis fãs, mundo afora. Creio que parte dessa persistente repercussão, passados já quase duas décadas de lançamento do filme, se deve ao uso inteligente, muitas vezes irônico, nele feito de um amplo leque de referências, que passeiam entre estratos culturais diversos. Nesse post, mais do que tentar qualquer análise do Nightmare, eu gostaria de apresentar uma listagem - necessariamente parcial - dessas referências.
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Um bom ponto de partida para isso são as próprias declarações dos criadores do filme. Tim Burton, em uma entrevista que faz parte do making of oficial da animação [1], esclareceu a esse respeito:
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Cresci gostando de histórias que todo Natal eram exibidas, como Rudolph, a Rena do Nariz Vermelho [Rudolph, the Red-Nosed Reindeer (1964)] ou O Grinch que Roubou o Natal [How the Grinch Stole Christmas! (1966)]. Esses eram os meus especiais de Natal preferidos, quando eu crescia. Quando trabalhava na Disney, eu desenhei algo que era mais ou menos o inverso disso. É como o Grinch às avessas, por assim dizer, é sobre esse personagem que descobre o Natal e adora isso e decide fazer o Natal por conta própria. [2]
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Merece ser frisada a citação ao Grinch, estrela de um livro do Dr. Seuss editado em 1957, que em 1966 conheceu uma adaptação para TV, co-dirigida por Chuck Jones (animador de, entre outros, personagens conhecidos como Pernalonga e Papa-Léguas): descontadas as diferenças de intenção, são de fato notáveis as proximidades entre Jack e Grinch, que se travestem ambos de Papai Noel, em suas peripécias que tem consequências sinistras para o Natal.


Theodor Seuss Geisel (Dr. Seuss) trabalhando em um desenho do Grinch para How the Grinch Stole Christmas!, em 1957


Fotograma de How the Grinch Stole Christmas! (1966),dirigido por Chuck Jones e Ben Washam
e fotograma de The Nightmare before Christimas (1993) 

Igualmente, é mais do que uma simples coincidência a semelhança entre os focinhos brilhantes de Zero, o cachorro-fantasma de Jack, e de Rudolph - assim como os habitantes da Cidade do Natal, em Nightmare, devem algo do seu aspecto aos personagens da animação protagonizada pela rena de nariz vermelho. Nessa mesma linha, vale a pena lembrar de um outro longa-metragem em stop-motion realizado por Jules Bass, um dos produtores de Rudoph: trata-se d'A Festa do Monstro Maluco (Mad Monster Party?, 1967), uma atração recorrente das antigas “Sessões da Tarde” brasileiras, no qual uma dezena de monstros famosos contracenam, como que prefigurando a medonha população da Cidade do Halloween, em Nightmare.


Rudolph e um companheiro em fotograma de Rudolph, the Red-Nosed Reindeer (1964) 
e Zero, em fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)


Cartaz e fotograma de Mad Monster Party? (1967), dirigido por Jules Bass


No acima citado making of de Nightmare, o diretor Henry Selick fez a seguinte declaração a respeito da concepção visual do filme:
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A direção de arte segue de perto as diretrizes que Tim Burton imprimiu a outros filmes, especialmente ao seu primeiro curta-metragem, Vincent - expressionistas alemães combinados com Dr. Seuss. [2]
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De fato, é mais do que patente o débito de Nightmare para com alguns clássicos do chamado cinema expressionista alemão. Para ficar em dois exemplos somente: a espacialidade que caracteriza a Cidade do Halloween é muito semelhante às perspectivas alucinadas que marcam O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920), filme dirigido por Robert Wiene, e os vampiros de Nightmare pertencem à mesma linhagem assustadora do Nosferatu criado por Friedrich Wilhelm Murnau [cf. link].


 Croqui e fotograma de Das Cabinet des Dr. Caligari (1920), dirigido por Robert Wiene


Cartaz italiano de Nosferatu, eine Symphonie des Grauens (1922), dirigido por F W. Murnau
e os vampiros de The Nightmare Before Christmas (1993)


Na continuidade estética do cinema expressionista alemão, outras referências para a animação protagonizada por Jack Skellington pertencem aquele rico filão de filmes de terror/horror, que floresceu nos países de língua inglesa. Não seria possível esgotar aqui a lista de obras de produtoras como a norte-americana Universal Pictures ou a inglesa Hammer que poderiam ser comparados ao Nightmare. Mesmo o celebrado Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, cuja sombria sequência de abertura ecoa as películas expressionistas, me parece ser citado - em mais de um momento - no filme concebido por Burton: desse modo, por exemplo, o traveling que literalmente introduz o espectador na Cidade do Haloween, no início de Nightmare, guarda algo das tomadas progressivamente mais próximas da mansão de Kane, que abrem o filme de Welles.


Acima, fotogramas da sequência de abertura de Citizen Kane (1941), dirigido por Orson Welles 
e, abaixo, fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)

Fotograma de Citizen Kane (1941), dirigido por Orson Welles 
e fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)


Mas qualquer lista de referências visuais de Nightmare não deve deixar de incluir obras e artistas que figuram nos compêndios da disciplina tradicionalmente mais prestigiada que é a História da Arte. Uma interessante aproximação poderia ser feita, nesse sentido, entre a própria figura de Jack e o personagem de um desenho do artista belga Félicien Rops, intitulado O Vício Supremo (c.1884) [4], produzido como frontispício de um livro do literato decadentista Joséphin Péladan. Não somente a constituição física - esguia e cadavérica - e a indumentária de Jack parecem quase decalcadas da obra de Rops: também a 'habilidade' que Jack tem de remover a sua própria cabeça frisa o seu parentesco com a criatura acéfala do belga.


À esquerda, Le Vice suprême (c.1884) de Félicien Rops [4]
detalhe de fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)


A referência a Rops é apenas a 'ponta do iceberg' da relação de Burton com a cultura figurativa européia de finais do século XIX, onde surgem com destaque as tendências decadentistas e simbolistas. Não é o momento de discutir essa relação, mas alguns poucos exemplos deverão bastar aqui. Já muito se chamou a atenção para a influência que exerceu sobre o imaginário e o tom da obras de Burton um ilustrador como Edward Gorey, com a sua sensibilidade 'vitoriana' - e, de fato, as texturas que aparecem no curta Vincent são muito semelhantes ao uso de hachuras que Gorey faz em suas imagens. Mas, no caso de Nightmare, creio que os precedentes para as texturas torturadas, quase onipresentes nas superfícies da Cidade do Haloween, devem ser buscados na produção gráfica e pinturas de artistas como Edward Munch, Vincent Van Gogh ou James Ensor - não por acaso, sempre citados como 'precursores' dos expressionistas do século XX. As forma e ritmos do autor d'O Grito [5] ou a realidade transfigurada apresentada por Van Gogh e evidente em obras como A Noite Estrelada [6], ecoam, assim, profundamente e de formas múltiplas, na animação criada por Burton.


À esquerda, O grito, (1895), de Edward Munch [5]
e fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)

À esquerda, A Noite Estrelada (1889), de Vincent Van Gogh [6]
e fotograma de The Nightmare Before Christmas (1993)

Arthur Valle
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[1] Nos Bastidores: Por Trás das Câmeras de 'O Estranho Mundo de Jack'. O Estranho Mundo de Jack. Edição de Colecionador - 2 discos. Direção: Henry Selick. Produção: Tim Burton e Denise Di Novi. Disney, 2008, 2 DVD, Cor.
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[2] "I grew up liking those stories like, you know, every Christmas you'd watch things like Rudolph, the Red-Nosed Reindeer, or The Grinch that Stole Christmas. Those were my favorites holiday specials when I was growing up. So, when I was working at Disney, I designed something that's sort of the reverse of that. It's like the Grinch in reverse, so to speak, about this character who finds Christmas and loves it and decides to try to do it himself". Idem.
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[3] "The art direction is very along the lines of what Tim Burton has done in others films, especially in his first short film, Vincent - German expressionists combined with Dr. Seuss". Idem.
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[4] FÉLICIEN ROPS (1833-1889): O Vício Supremo, c. 1884. Técnica mista sobre papel, 23,8 x 16 cm. Bruxelas, Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique. Mais informações sobre o desenho de Rops podem ser encontrados no seguinte link..
[5] Os dados da versão aqui reproduzida são: EDWARD MUNCH (1863-1944): O grito, 1895. Litografia, crayon e tusche, 35,5 x 25,4 cm.
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[6] VINCENT VAN GOGH (1853-1890): A Noite Estrelada, 1889. Óleo em tela, 73,7 × 92,1 cm. Nova York, Museum of Modern Art.

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