A ideia de Tóquio sempre surgia em minha mente no estágio de planejamento. Eu queria que fosse Tóquio. Minha ideia era fazer uma história de sci fi que se passasse nessa cidade caótica. Tóquio está muito presente na história.
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Katsuhiro Ôtomo, sobre as diretrizes visuais de Akira [1].
As palavras acima reproduzidas, de Katsuhiro Ôtomo, o criador e diretor da animação Akira (アキラ, 1988), revelam o quanto a imagem da megalópole pairou, desde os primeiros momentos , sobre a concepção do mangá que deu origem ao longa metragem [2]. E, de fato, na impressionante sequência da perseguição de motos do início do filme, ritmada pela música "étnica" do Geinoh Yamashiro Gumi [3], não é Kaneda, nem nenhum de seus amigos ou inimigos, o personagem principal. Este é, antes, a própria Neo Tokio, que se ergue com seus edifícios-monólitos e com sua miríade de luminosos inquietos. Neo Tokio, uma cidade tão grande que engoliu o seu skyline, tão densa que depravou as suas perspectivas.
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Um instantâneo estrategicamente tirado de qualquer metrópole contemporânea bastaria para demonstrar que a Neo Tokio de Akira, mais do que um puro dado da imaginação de Ôtomo, é, essencialmente, uma hipérbole do real. Mas, no Ocidente, o sonho - ou, mais frequentemente, o pesadelo - da cidade desmesurada faz parte de uma tradição bem mais antiga.
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Essa tradição já se anuncia, por exemplo, nas torres de San Gimignano ou nas figurações da Torre de Babel, pintadas por Pieter Brueghel, o Velho, nas quais o símbolo bíblico da húbris e da discórdia humanas parece desafiar os céus, como uma gigantesca colméia de arcos sobrepostos, à la Coliseu. O século XIX, com sua industrialização e seu enorme crescimento urbano, inspiraria o surgimento de imagens análogas, em bem maior quantidade. As representações de Londres são, nesse sentido, exemplares: artistas como Paul Gavarni ou Gustave Doré reinventaram a cidade em tons de branco e preto, que espelhavam um contraste maniqueísta entre opulência e miséria extremas. Nas imagens dos bairros pobres de Londres, feitas por Doré, altos muros de tijolos se elevam, esmagando os menos favorecidos, “uma sensação [...] de terror é provocada por edifícios em ruínas, por ruas brumosas, por chaminés vomitando fumaça” [4]. Na Londres de Doré, a opressão dá a tônica.
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Um instantâneo estrategicamente tirado de qualquer metrópole contemporânea bastaria para demonstrar que a Neo Tokio de Akira, mais do que um puro dado da imaginação de Ôtomo, é, essencialmente, uma hipérbole do real. Mas, no Ocidente, o sonho - ou, mais frequentemente, o pesadelo - da cidade desmesurada faz parte de uma tradição bem mais antiga.
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Hong Kong (2006), foto de Michael Wolf da série Architecture of Density. Disponível em: http://www.photomichaelwolf.com/hongkongarchitecture/ Acesso 14 jun. 2010.
.Essa tradição já se anuncia, por exemplo, nas torres de San Gimignano ou nas figurações da Torre de Babel, pintadas por Pieter Brueghel, o Velho, nas quais o símbolo bíblico da húbris e da discórdia humanas parece desafiar os céus, como uma gigantesca colméia de arcos sobrepostos, à la Coliseu. O século XIX, com sua industrialização e seu enorme crescimento urbano, inspiraria o surgimento de imagens análogas, em bem maior quantidade. As representações de Londres são, nesse sentido, exemplares: artistas como Paul Gavarni ou Gustave Doré reinventaram a cidade em tons de branco e preto, que espelhavam um contraste maniqueísta entre opulência e miséria extremas. Nas imagens dos bairros pobres de Londres, feitas por Doré, altos muros de tijolos se elevam, esmagando os menos favorecidos, “uma sensação [...] de terror é provocada por edifícios em ruínas, por ruas brumosas, por chaminés vomitando fumaça” [4]. Na Londres de Doré, a opressão dá a tônica.
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PIETER BRUEGEL, O VELHO (c.1525-1569): A Torre de Babel, c. 1563.
Óleo sobre painel, 114 cm x 155 cm.
Viena, Kunsthistorisches Museum.
.Óleo sobre painel, 114 cm x 155 cm.
Viena, Kunsthistorisches Museum.
Sobre Londres, pela ferrovia e Ludgate Hill, xilogravuras segundo Gustave Doré (1832-1883), para o livro London: A Pilgrimage, publicado em 1872.
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Dos poemas e pinturas dos futuristas italianos às obras dos artistas alemães da Neue Sachlichkeit, das Villes Tentaculaires de Émile Verhaeren às Cités Obscures de François Schuiten, a imagem da megalópole assume os ares de uma obsessão moderna. Em sua obra gráfica, um artista como Andreas Paul Weber [5] captura com frequencia o desconforto gerado pela inumanidade das grandes cidades, como em Lugar morto ou n’O Rumor, cujas janelas padronizadas, multiplicando-se ao infinito, frisam a sensação angustiante de anonimato e a dissolução total das identidades. Poder-se-ia como que reencontrar, nas sequências finais da animação de Ôtomo, o apocalipse urbano e o caráter grotesco da personificação do rumor que se destacam nas imagens de Weber..
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As aproximações entre Akira e as obras acima referidas são arbitrárias. Todavia, comentários de Ôtomo revelam algumas referências ocidentais que efetivamente contribuíram para a concepção da sua versão futurista de Tokio. É o caso, por exemplo, quando ele reflete sobre a recepção do mangá original e da adaptação animada fora do Japão:
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As aproximações entre Akira e as obras acima referidas são arbitrárias. Todavia, comentários de Ôtomo revelam algumas referências ocidentais que efetivamente contribuíram para a concepção da sua versão futurista de Tokio. É o caso, por exemplo, quando ele reflete sobre a recepção do mangá original e da adaptação animada fora do Japão:
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Fiquei preocupado em saber se gostariam ou não, mas as pessoas viram e acharam interessante. É como 'Blade Runner' e cyberpunk. Acho que tem a mesma visão do mundo que eles. O fato de que o mangá 'Akira' e o filme de animação terem sido aceitos no exterior deve-se ao fato de que compartilham dessas imagens. [6]
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A refrência ao cyberpunk é precisa. Desde pelo menos Neuromancer (1984), o livro inicial da Trilogia Sprawl de William Gibson, o cyberpunk havia se afirmado na cultura popular, transformando a distopia em um clichê recorrente. Boa parte da sua estética, porém, já se encontrava madura em um filme como o de Ridley Scott. A Neo Tokio de Akira e a Los Angeles de Blade Runner guardam, de fato, mais de uma semelhança: dir-se-ia que são cidades irmãs. Assim, a arte do cinema, cujos produtos influenciaram fundamentalmente Ôtomo [7], se insinua como um outro filão no qual a imagem da megalópole deita raízes profundas. Bastaria lembrar de um de seus primeiros exemplos, que assumiu o estatuto de verdadeiro paradigma: a inumana cidade de Metropolis (1927), de Fritz Lang, uma espécie de Babilônia projetada no futuro, com direito aos seus próprios deuses sombrios.
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[1] Extras: Entrevista com o Diretor. Akira. Edição Especial 20 anos. Direção: Katsuhiro Ôtomo. Focus Filmes, 2008, 2 DVD, Cor.
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[2] Akira, originalmente um mangá seriado em preto e branco, foi publicado nas páginas de Young Magazine (ヤングマガジン), de 1982 a 1990 - portanto, a versão animada estreou antes mesmo que a enorme série original, com mais de 2000 páginas, fosse concluída. A obra foi depois reunida em seis volumes pela editora japonesa Kodansha.
[3] O Geinoh Yamashiro Gumi (芸能山城組) é um coletivo musical japonês, fundado em 1974 por Tsutomu Ōhashi, que assinou a trilha de Akira usando um pseudônimo, Shoji Yamashiro.
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[4] HASKELL, Francis. Le Londres de Gustave Doré. In: ____. De l'art et du goût. Jadis et Naguère. Paris: Gallimard, 1989, p. 283.
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[5] Parte da obra de A. P. Weber pode ser conhecida no seguinte site: http://www.weber-museum.de/ Acesso em 14 jun. 2010.
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[6] Extras: Entrevista com o Diretor, op. cit.
[7] Na entrevista acima citada, Ôtomo reconheceu explicitamente a influência de filmes norte-americanos do final dos anos 1960, como Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969), de George Roy Hill, ou Easy Rider (196), de Dennis Hopper, que partilham o mesmo vago ideal libertário.
Fiquei preocupado em saber se gostariam ou não, mas as pessoas viram e acharam interessante. É como 'Blade Runner' e cyberpunk. Acho que tem a mesma visão do mundo que eles. O fato de que o mangá 'Akira' e o filme de animação terem sido aceitos no exterior deve-se ao fato de que compartilham dessas imagens. [6]
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A refrência ao cyberpunk é precisa. Desde pelo menos Neuromancer (1984), o livro inicial da Trilogia Sprawl de William Gibson, o cyberpunk havia se afirmado na cultura popular, transformando a distopia em um clichê recorrente. Boa parte da sua estética, porém, já se encontrava madura em um filme como o de Ridley Scott. A Neo Tokio de Akira e a Los Angeles de Blade Runner guardam, de fato, mais de uma semelhança: dir-se-ia que são cidades irmãs. Assim, a arte do cinema, cujos produtos influenciaram fundamentalmente Ôtomo [7], se insinua como um outro filão no qual a imagem da megalópole deita raízes profundas. Bastaria lembrar de um de seus primeiros exemplos, que assumiu o estatuto de verdadeiro paradigma: a inumana cidade de Metropolis (1927), de Fritz Lang, uma espécie de Babilônia projetada no futuro, com direito aos seus próprios deuses sombrios.
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Arthur Valle_____
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[1] Extras: Entrevista com o Diretor. Akira. Edição Especial 20 anos. Direção: Katsuhiro Ôtomo. Focus Filmes, 2008, 2 DVD, Cor.
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[2] Akira, originalmente um mangá seriado em preto e branco, foi publicado nas páginas de Young Magazine (ヤングマガジン), de 1982 a 1990 - portanto, a versão animada estreou antes mesmo que a enorme série original, com mais de 2000 páginas, fosse concluída. A obra foi depois reunida em seis volumes pela editora japonesa Kodansha.
[3] O Geinoh Yamashiro Gumi (芸能山城組) é um coletivo musical japonês, fundado em 1974 por Tsutomu Ōhashi, que assinou a trilha de Akira usando um pseudônimo, Shoji Yamashiro.
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[4] HASKELL, Francis. Le Londres de Gustave Doré. In: ____. De l'art et du goût. Jadis et Naguère. Paris: Gallimard, 1989, p. 283.
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[5] Parte da obra de A. P. Weber pode ser conhecida no seguinte site: http://www.weber-museum.de/ Acesso em 14 jun. 2010.
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[6] Extras: Entrevista com o Diretor, op. cit.
[7] Na entrevista acima citada, Ôtomo reconheceu explicitamente a influência de filmes norte-americanos do final dos anos 1960, como Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969), de George Roy Hill, ou Easy Rider (196), de Dennis Hopper, que partilham o mesmo vago ideal libertário.
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